Sexta-Feira, 26 de Abril de 2024

Expressão criativa

Em cinco décadas de produção, a genialidade do arquiteto tem-se manifestado em diversos campos do design. Por Aline Barbosa e Pedro Zuccolotto

Foto: Pedro Zuccolotto

O trabalho de Guto Lacaz tem o poder de enlevar os sentidos do observador. Exemplo disso foi a instalação “Auditório para questões delicadas” (1989), cuja imagem até hoje emociona pela grandiloquência e sutileza, características contrastantes, porém harmoniosamente adaptadas à obra. O arquiteto formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São José dos Campos, SP, começou as incursões ao mundo das artes de modo instintivo. Sua técnica, mais que apurada ao longo da carreira, permitiu-lhe dominar diferentes linguagens artísticas. Na entrevista a seguir, conheça detalhes curiosos da trajetória desse artista versátil e apaixonado pelo que faz.

Você é um artista multimídia: ilustrador, designer, desenhista e cenógrafo. Antes disso, é arquiteto de formação. Conte–nos por que arquitetos são profissionais tão versáteis?

Eu estudei na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São José dos Campos, na primeira turma: de 1969 a 1975. Era uma faculdade que prometia ser algo como a junção da Escola de Comunicação e Artes (ECA–USP) e a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU–USP). Além da base padrão, com desenho industrial e comunicação visual, já tínhamos incorporado à grade cursos de cinema, fotografia e música. Na época, existia o Super 8, que era o cinema amador. Estava começando a nascer o conceito de multimídia. Havia quem fizesse cinema profissional, que era mais caro, e quem fizesse o amador. Nós fazíamos o Super 8. O cinema foi uma paixão que nasceu nessa época. No campo da fotografia, a gente trabalhava com um projetor da Kodak, Carrossel 6, mais três telas e gravador de rolo. Era o que se chamava de multitela. Foi quando percebi que nasciam novas linguagens. Mergulhei de cabeça.

Três lâmpadas , pintura  em acrílico sobre tela, 2 m X 2 m, 1987.

Quando saí da faculdade, comecei a trabalhar com cinema. Eu fazia a parte gráfica, que era a apresentação de filmes e cenografia. Mas não havia recursos para o cinema na década de 70. Era tudo feito de graça. Depois me envolvi com comunicação visual, juntando o aprendizado do curso e a convivência com meu pai, que era escritor. Comecei a fazer logotipos e cartazes. Aceitava qualquer convite, mesmo sendo amador. Eu achava que eu podia fazer. E a vida foi me levando. Quatro anos depois de formado, ingressei no universo das artes plásticas, num concurso chamado “Primeira Mostra do Objeto”. Eu já tinha trabalhos na área de desenho industrial. Fiz minha inscrição e ganhei o prêmio. Foi então que percebi que o que eu fazia como uma espécie de brincadeira era algo ligado ao universo das artes plásticas, objetos dadaístas, sabe? Fiquei maluco, e vi que era arte, sendo que eu nunca tinha pensando em ser artista. Na época, eu trabalha como arquiteto.

As coisas foram acontecendo naturalmente, eu tinha um potencial para exercer aquelas atividades e me atrevia. Foi um conjunto de sorte, oportunidade e desejo pessoal. Eu mesmo compus minha formação preenchendo as falhas que eu tinha. Eu não sabia fazer gravura, não sabia pintar. Fui aprender com quem dominava e até hoje eu faço isso. Vejo um artista que domina uma tecnologia e vou com ele aprender. Até hoje me surpreendo comigo mesmo. 

Quais trabalhos proporcionaram a você maior realização?

Na verdade, qualquer trabalho é uma realização. Mas tem alguns que marcaram. Tem um que ficou bem bonito — a capa do Luni, um conjunto musical composto por oito integrantes que gravou só um LP. A gente fez uma capa quase hollywoodiana. Construímos a palavra Luni com tipos de 5 metros de altura e os componentes ocupavam essa capa tipográfica. Eu nem sei como a gente conseguiu fazer aquilo, tinha até um carro em cena. Hoje seria uma capa impossível de ser feita. A Marisa Orth era uma das cantoras. Tinha a Natália Barros… Era um grupo muito divertido. Também crie uma capa muito boa para o Premeditando o Breque. Fiz alguns cartazes marcantes, como o da Eco92 e um para as Olimpíadas que ficou bonito também.

Capa do vinil do grupo Luni, formado por Marisa Orth, Natalia Barros,  Théo Wernek,  André Gordon,  Fernando Figueiredo, Lelena Anhaia,  Gilles Eduar e Lloyd Bonnemaison. Lacaz distribuiu os integrantes entre os quatro tipos que formam a palavra Luni. Produtora: Silvia Moraes. 

Há 40 anos faço trabalho gráfico. Desde um logo a uma pequena ilustração, esse foi sempre um trabalho desafiador, com uma história por trás. Ano passado eu fiz 15 painéis na Avenida Paulista sobre a quarta Revolução Industrial, que é a revolução da Inteligência Artificial. Ficaram muito bonitos: a maior exposição ao ar livre que existe em São Paulo, com painéis colocados em postes da Avenida Paulista, entre a Augusta e a Casa Branca. Ilustrei aspectos dessa revolução que, acredito, causarão mais impacto à sociedade, como o trabalho realizado por máquinas que dispensam piloto — o metrô da linha amarela já não tem mais — e vários outros serviços cujo funcionamento não depende mais de pessoas, e sim de máquinas. Outro trabalho que gosto muito é sobre Santos Dumont. Em 2006, ano de centenário do voo do 14 Bis, fizemos uma grande exposição no Museu da Casa Brasileira. Foi a mostra que mais teve visitação no local até hoje, a “Santos Dumont Designer”, em que o inventor foi apresentado como designer (de produto). 

A arquitetura está presente em seus trabalhos artísticos?

Sim. A maioria das coisas que eu faço partem de um projeto. É preciso tirar as medidas e gerar ocupação de espaço. Faço as três visitas: as perspectivas, o desenho técnico, o detalhamento. Muitos são quase arquitetura, porque edificam e tornam-se peças grandes. Nem sempre é um abrigo, mas é uma coisa na escala da criatura. Tem peça de 12 metros de altura, de 10 metros. E que ficam no espaço. 

Qual foi seu maior desafio como profissional?

Eu não sabia o que fazer para resolver o “Auditório para questões delicadas” no lago do Ibirapuera. A prefeitura me convidou. A prefeita era a Luiza Erundina, e a secretária da cultura, a Marilena Chauí. Elas imaginavam um evento sobre direitos humanos e convidaram profissionais de todas as áreas. Em artes plásticas convidaram 4 artistas para fazer interversões urbanas, algo que eu nunca tinha feito. E na interversão urbana você tem de fazer uma peça grande, que fique um determinado tempo em um determinado lugar e cause um choque. Eu imaginei um auditório flutuante. Foi dificílimo. Era algo enorme. Tinha 15 metros por 15 metros, era flutuante e ao ar livre. Deu muita coisa errada. Saiu no jornal que estava dando errado, e eu morri de vergonha. Mas tinha de resolver, pois eu aceitara o convite da prefeitura. Com ajuda de amigos, em três meses resolvemos a complexidade do trabalho. Esse era justamente o tempo que ele ia ficar exposto. Até hoje eu não entendo como ficou tão bom. Foi a minha maior realização. 

Auditório para questões delicadas: instalação flutuante no lago do Ibirapuera, realizada a convite da então secretária de cultura Marilena Chauí.

Como é traduzir uma ideia por meio de uma imagem? Fale-nos sobre o seu processo criativo.

É algo que eu faço desde a faculdade, quando comecei a ilustrar livros e fazer logotipos. Eu sempre gostei do que era impresso, então comecei a praticar. Um professor de português me deu um livro didático para ilustrar. Uma vez eu peguei para ilustrar uma canção em uma determinada situação no Rio de Janeiro. Na época, a gente recebia músicas para ilustrar por fita cassete. Foi quando recebi uma canção do Caetano Veloso, “A terceira margem do rio”. Eu não entendi nada, nada, nada. Era muito difícil, eu escutava várias vezes e não entendia. Aí eu pensei: “Vou esquecer a letra que é muito complicada e pensar no título”. Fiz um objeto composto por duas canoas e uma terceira, que aparecia em um reflexo no espelho. Era um trabalho óptico. Fotografei e mandei para o Rio. Um dia eu estava na Bahia, mostrando para alguns estudantes este trabalho e um deles me perguntou se eu sabia que o nome da música era um texto de Guimarães Rosa. Eu confesso que não sabia. Mais tarde, com a chegada da web, acabei descobrindo que o Milton Nascimento fez a adaptação do conto para a letra dessa canção e passou para o Caetano musicar. E só então que eu fui realmente entender o que a letra queria dizer. Foram quase 10 anos para entender o que eu tinha feito. Fiquei contente por estar na mesma turma do Guimarães, do Caetano, do Milton e do Nelson Pereira, que também fez um longa-metragem sobre o tema.

Fale um pouco sobre o Brasil dos anos 1970 e o Brasil em 2019. Quais semelhanças você percebe? Quais são as diferenças?

Na década de setenta, a gente ainda estava sob a ditadura militar. Era uma época em que não se podia nada e ao mesmo tempo se podia tudo. Era uma época de grande libertação mundial, com o movimento hippie contra a Guerra do Vietnã, que liberou os costumes. Antes, para você transar com a namorada, tinha de casar com ela. Foi na minha geração que passamos a poder transar com as amigas, com quem quiséssemos. Houve uma liberação de costumes da qual o mundo todo se beneficiou. Por outro lado, politicamente você não podia se manifestar porque poderia ser preso. Eu mesmo fui preso por acaso, mas depois fui liberado. Não cheguei a ficar atrás das grades, mas fui detido por um período. Era algo que dava medo. Mas a década entre 1970 e 1980 foi a mais legal no Brasil. Eu fiz coisas na década de 80 que hoje não poderia mais fazer. Hoje vivemos diante de muita intolerância. Temos todo o conforto tecnológico, mas socialmente fomos agredidos. Mas tem o lado bom: as vozes antes caladas dos negros, das mulheres e dos homossexuais começaram a se colocar. Cada época tem seus prós e contras.

Estudo para cartaz da Brazil Week, 2012

De que maneira a sua produção reflete a digitalização dos processos no âmbito das artes visuais?

Eu sempre fiquei ligado no computador, que era no começo muito grande e muito caro. Em 1989, um amigo falou que estava ilustrando um livro no computador, e imaginei que fosse numa daquelas máquinas gigantes. Até que ele me apresentou o Macintosh. Naquela época era proibido ter computador. Havia uma lei de reserva de mercado pela qual ninguém podia ter um Mac ou PC. Então as pessoas recorriam a contrabandistas, mas, se a polícia federal descobrisse esse tipo de mercadoria sem nota fiscal, prendia o proprietário. Nós compramos e tínhamos de pagar em dólar. Ninguém sabia usar. Depois de um ano, eu já dominava alguns programas. Ninguém mais sabe viver sem isso, foi uma ferramenta que arrebatou tudo. Em artes gráficas, os processos antes do computador eram lindos. Eram demorados e muita gente ganhava dinheiro as nossas custas. As letras eram encomendadas a um laboratório. Juntávamos os caracteres sobre a mesa e colávamos. Era bonito, tudo analógico.

Você acha que a era digital foi melhor que a analógica?

Na verdade, ela são a mesma coisa. O que importa é o que a sua cabeça vai fazer. O computador é só um meio de acelerar os processos. Na prática, passamos a enxergar muitas maneiras de fazer as coisas. Você faz na hora que quiser.

Maçã lançada por um drone cai na cabeça de Isaac Newton na forma de robô. Painéis sobre a IV revolução Industrial, Avenida Paulista, UGT/Doc galeria, 2018.

Se quiser chamar uma fonte, chamo agora. Naquela época, você tinha de escrever a fonte no papel e chamar o motoboy. Ele pegava o papel e levava para o laboratório. No dia seguinte, você recebia o que pediu. Isso se chamava fotocomposição. Era tudo muito lento. Era motoboy para cá e para lá. Com o computador, pode-se realizar todo o processo de fotocomposição. Na verdade, o que importa mesmo é o que você pensa. Quase tudo que eu faço no computador poderia ser feito de forma analógica.

Qual conselho você daria para quem está ingressando no campo do design?

Nossa área precisa de paixão. Toda sua paixão deve estar num simples cartão de visitas. Às vezes, a peça mais simples é a que mais circula. É por meio dela que o próprio dono do cartão vai divulgar seu nome. Assista a bons filmes, visite exposições. Arte é observação e concentração. Pare e observe as coisas. De alguma forma, você vai transportar o resultado dessa experiência para sua próxima criação.

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