Quinta-Feira, 30 de Marco de 2023

Pontal: desafios no preparo do terreno e fundações

Estacas-pranchas metálicas totalizando 5.400 metros de cravação e canais drenantes provisórios com bombeamento para poço superior são alguns dos recursos lançados pelos engenheiros para a obra 3,3 metros abaixo do nível do Lago Guaíba. Texto: Gustavo Curcio. Colaboraram: Aline Barbosa e Pedro Zuccolotto. Fotos: Divulgação Melnick Even e Engenhosul.

Um conjunto de ações para requalificar e recuperar a Orla do Guaíba, o Centro Histórico e as vias urbanas que viabilizam a mobilidade e a acessibilidade à região da Usina do Gasômetro”. Assim a prefeitura da capital gaúcha definiu o programa chamado de “Orla-POA, organicidade e requalificação do espaço urbano, do lazer, do acesso e mobilidade em Porto Alegre”. Com investimento de US$ 34,7 milhões financiados pelo Banco de Desenvolvimento da América Latina, o projeto que transformou os ares do lago que banha Porto Alegre trouxe mudanças significativas para a várzea antes abandonada. O trecho revitalizado tem 1,3 quilômetros de extensão, e vai do Gasômetro até a Rótula das Cuias.  

Coroado pelo projeto do 360 Gastro Bar, um restaurante projetado pelos arquitetos Alexandre Viero, Sheila Bittencourt e Silvia Benedetti, o espaço tem sido aproveitado pela população da cidade. É quase irresistível não mergulhar na “praia” criada ali, mas as águas ainda poluídas impedem o uso efetivo do lago. Com estrutura de aço e fechamentos de vidro — aplicados inclusive no piso — a construção parece estar imersa nas águas do Guaíba. De lá, é possível assistir de um ângulo especial o belo pôr-do-sol tão famoso entre os porto-alegrenses. 

A Usina do Gasômetro é uma antiga usina de geração de energia movida a carvão mineral. Inaugurado em 1928, o prédio é um marco visual da cidade, graças à grande chaminé de 117 metros. Hoje funcionam no local quatro galerias de arte (Iberê Camargo, Lunara, Dos Arcos, 4o andar) e uma sala de cinema. O centro cultural abriga diversas atividades culturais, com grupos de teatro e dança.  

O terreno do empreendimento é mais uma das áreas (espaços) do Parque da Orla, que inicia no trecho onde está a Usina do Gasômetro e que foi a primeira área efetivamente revitalizada da orla. “O parque público do empreendimento deverá ser o segundo espaço entregue revitalizado na orla, porém deverá ser o primeiro a ser 100% entregue e executado com recursos únicos da iniciativa privada na cidade”, explica João Rubem Piccoli Filho, diretor técnico e de RH da Melnick Even.

Lago ou Rio?

Discussão entre especialista, o Guaíba foi considerado um lago por decreto, segundo alguns, para burlar a legislação ambiental: de acordo com o Código Florestal, a área de preservação permanente de um rio é de 500 metros. Para lagos, esta distância diminui para 30 metros. Independentemente da classificação, é consenso entre arquitetos e urbanistas que a ocupação consciente da várzea dos mananciais é sem dúvida melhor do que o abandono ou a ocupação ilegal. As margens do Guaíba eram originalmente ocupadas por matas de restinga.  

Imagem de satélite (Google Earth) com vista para o Guaíba. 

Um novo cartão-postal para a cidade

Em novembro de 2018 as obras do Pontal do Estaleiro tiveram seu pontapé inicial. O mega empreendimento às margens do Guaíba terá um parque público com 29 mil metros quadrados e 700 metros de extensão junto à várzea. Recentemente as obras começaram a aparecer e até o final de julho cerca de 12% já estavam concluídos, incluindo as fases de infraestrutura, escavações e lajes de supressão. Segundo dados da Melnick Even, uma das construtoras envolvidas no complexo de uso misto, cerca de 500 trabalhadores integram a equipe no canteiro. O empreendimento conduzido pela SVB Par, terá execução por meio de consórcio formado pela Engenhosul e Melnick Even, sócia da SVB Par na torre do complexo. O empreendimento terá complexo comercial com 114 mil metros quadrados, shopping center com 25 mil m2, com capacidade de receber até 163 lojas em três pavimentos. Uma megastore do home-center Leroy Merlin será uma das cinco âncoras, que terá restaurantes, praça de alimentação e cinema. O conjunto também será dotado de Hotel Double Tree by Hilton, centro de eventos e Centro Médico, sob responsabilidade do Hospital Moinhos de Vento. Situada na avenida Padre Cacique, no bairro Cristal, a área abrigou, até 1995, o Estaleiro Só, uma empresa construtora de navios fundada em 1850. Daí, o nome do empreendimento, Pontal do Estaleiro. 

Vista da orla revitalizada em região próxima à Usina do Gasômetro. Detalhe da marquise projetada sobre o restaurante e pista de corrida à beira do lago. 

A obra

O complexo do Pontal possui dois empreendedores principais: a BM Par Best Mall Participações (que incorporará o shopping center) e a Melnick Even Incorporações e Construções (que incorporará a torre única). “Será um empreendimento multiuso com cerca de 114 mil m² de área construída, que contará em sua base com um shopping center com aprox. 25.000 m² de área bruta locável (ABL) e que terá como uma de suas principais âncoras uma unidade de medicina diagnóstica do Hospital Moinhos de Vento, um dos principais nomes do setor na cidade. Além disso, terá também um parque público de 29 mil m², entregue equipado e urbanizado pelos empreendedores”, explica Piccoli. Acima da base — a partir do 4° pavimento, há cerca de 21 metros do solo — haverá uma torre única, com um hotel do 4° ao 11° pavimentos, cuja bandeira será o Double Tree by Hilton e que contará também com um centro de eventos com cerca de 1.400 m², que também será gerido pela marca. “Nos pavimentos superiores (do 12° ao 23° pavimentos) terá 237 salas comerciais, todas com excelente vista para o Rio Guaíba. Atualmente, a torre unidade (unidades hoteleiras e salas comerciais) já encontra-se praticamente toda comercializada”, completa Piccoli.

Fundações em área de várzea

A etapa atual de execução da obra, shell do shopping center, está sendo realizada pelo Consórcio Melnick Even / Engenhosul. Segundo o engenheiro Marco Périco, diretor da Engenhosul, geralmente em região de várzea de rio se tem um lençol freático alto e presença constante de água durante a execução das fundações. “Foram tomados todos os cuidados na elaboração do projeto de fundações e terraplenagem, além disso, as sondagens executadas no local apresentaram uma área de falha geológica com presença de maciços rochosos”, explica o profissional. A solução apresentada em projeto foi em estaca raiz, buscando atender tanto a presença de solo como de rocha, o que na obra apresentou grandes variações nas profundidades de cada tipo. “Era indesejável a presença de água no canteiro durante a execução das fundações e foram tomadas medidas tais como as estacas de pranchas metálicas perimetrais, uma vez que o sistema convencional de ponteiras para o rebaixamento do lençol freático não seria eficiente pela presença de rocha”, explica Périco. 

Essa fase da obra foi executada em período de baixa do nível do Lago Guaíba, de janeiro a junho, com intensidade de uso de equipamentos, sendo utilizados simultaneamente 12 máquinas de perfuração de estaca raiz com argamassa de injeção usinada, objetivando maior velocidade na execução.

O que revelou a sondagem

A área onde estava localizada o antigo Estaleiro Só, conhecida como Pontal do Asseio, foi sendo conquistada ao Guaíba ao longo de décadas com sucessivas etapas de aterro sendo depositadas sobre o embasamento rochoso. 

“No sítio da obra ocorre a presença de rochas graníticas variando de sã até fortemente alterada. A movimentação de materiais terrosos e rochosos fez uso de escaveiras hidráulicas, desmonte mecânico de rocha e inclusive explosivos”, detalha Piccoli. Segundo o engenheiro, para entendimento do subsolo, foram feitas campanhas de sondagem SPT, sondagens rotativas, ensaios de caracterização do solo local, permeabilidade, ensaios de refração sísmica, eletrorresistividade e geo radar. “Com a compilação destas informações foi possível ter um bom entendimento do local e condições para elaborar um detalhado plano de trabalho. O volume total de escavação é de 132.000 m³”, completa. Diante dos resultados da sondagem, a solução de fundações adotada foi de estacas raiz, ancoradas no maciço rochoso. Os comprimentos de projeto foram validados a partir de resultados de provas de carga estática, sendo as estacas dimensionadas para uma carga de 130 toneladas-força. O projeto de fundações tem um total de 2.217 estacas raízes com profundidade média de 8 metros totalizando 22.178 metros de estacas raízes com diâmetro de 40 cm.

Cotas abaixo do nível do Lago Guaíba

A área de intervenção da obra é de aproximadamente 22.000 m2 com um perímetro em torno de 700 metros. A nível mais baixo do empreendimento —o 2º subsolo — está na cota -1,80 metros, portanto, o empreendimento está sendo implantado 3,30 metros abaixo do nível médio do Lago Guaíba. “Toda esta área fica às margens do Lago Guaíba com grande variação do lençol freático. Porém, a principal contribuição de recebimento de água nesse setor da obra vem do grande maciço rochoso que está à frente do empreendimento passando por baixo da Av. Padre Cacique”, explica Périco. Neste perímetro foram executadas estacas-pranchas metálicas com cravação variando de 3 a 8 metros de profundidade. Foram utilizadas 1.200 estacas-pranchas metálicas totalizando 5.400 metros de cravação. “Internamente à obra foram realizados vários canais drenantes provisórios com bombeamento para um poço superior e posteriormente lançados a rede pluvial existente no intuito de manter o canteiro de obras seco”, complementa o diretor da Engenhosul. Do talude conformado junto ao perímetro das estacas-pranchas até o alinhamento da obra, foi projetada uma cortina de contenção com altura de 7,30 metros de concreto armado com aditivo cristalizante que, juntamente com a laje de sub-pressão, formam uma caixa-estanque semelhante a um casco de navio. 

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Preparo do terreno

A terraplenagem teve como principal desafio a detonação dos grandes volumes de rocha encontrados. “Os volumes de escavação, em torno de 120.000 m³, estão sendo executados em 2 fases”, explica Piccoli. Parte deste montante será utilizado para conformação das áreas lindeiras (áreas que estão cercando uma região protegida até determinada distância) e o restante para bota-fora. “A logística é bastante complexa para manter a obra em condições de produção das frentes como o estaqueamento, sendo 27.000 metros de estacas raiz, 3.600 m³ de blocos de fundação em concreto armado, além do trânsito para bota-fora de escavação de mais de 4.000 caminhões”, complementa. Segundo a equipe de engenheiros, o acompanhamento dos achados arqueológicos também impactou na logística da obra, uma vez que as escavações só puderam avançar após a verificação e liberação de cada local.

Resfriamento de concreto

O projeto conta com uma laje de sub-pressão que atende a uma carga de 3.500 kg/m² e tem uma drenagem permanente por um sistema de bombas para alívio das tensões em época de cheia com alteração significativa da pressão hidrostática. “É imprescindível que esta laje de subpressão e a cortina de contenção não apresentem fissuração e sejam impermeáveis. Para tanto, contratamos consultoria específica para o detalhamento de todas as etapas de execução desta laje e cortina com juntas de concretagem com uso de fitas hidroexpansivas, concreto com aditivo cristalizante e também aditivos específicos para o aumento da trabalhabilidade necessária em grandes volumes de concretagem”, explica Périco. “Buscou-se também um fator a/c (água/cimento) baixo, com menos porosidade no concreto e melhoria da impermeabilidade do concreto”, complementa Piccoli. 

Vários traços foram dosados na usina de concreto com o uso do cimento CPIV-32, buscando baixo calor de hidratação na cura do concreto, controle da reação álcali-agregado, diminuição de fissuras para tornar impermeável a laje de subpressão e as cortinas de contenção do entorno. “Além de todos os procedimentos adotados acima, o traço para grandes volumes de concreto, como o bloco central de fundação com 660 m³, teve ainda a necessidade do uso de gelo para controlar e diminuir os efeitos do calor de hidratação do cimento na cura, permitindo, com isso, a redução de fissuração do concreto”, explica Périco. 

Outro motivo importante para o cuidado com a temperatura do concreto durante o lançamento e a cura, é a necessidade de evitar o efeito da Etringita Tardia (DEF-Dealyed Ettingite Formation), decorrente da expansão e fissuração retardada da etringita mineral em função do excesso de calor. A patologia pode se manifestar em cinco, dez ou vinte anos, causando a perda de durabilidade das estruturas. 

A temperatura do bloco de fundação central do empreendimento após a concretagem foi controlada, tendo por limite 65°C. A Empresa Mendes Lima Engenharia fez o acompanhamento técnico do traço do concreto na usina, adição de gelo, monitoramento da temperatura e acompanhamento da cura.

A experiência BIM (Building Information Modeling) 

“Utilizamos a modelagem BIM nas disciplinas de terraplenagem, arquitetura, estrutura e instalações para compatibilização, e estamos desenvolvendo o planejamento com a modelagem”, conta Rubem. Os próximo passo, segundo os engenheiros, será a formatação da Gestão Integrada com esta ferramenta.

Matéria publicada originalmente na revista Téchne.

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